O dia em que tentaram matar Bob Marley com um tiro no coração
Em meio a turbulência política e social da Jamaica dos anos 1970, o cantor de reggae mais famoso do planeta foi atacado dentro casa.
Robert Nesta
Marley Booker, mais conhecido como Bob Marley, levou o reggae e o movimento
Rastafári para o mundo Na noite de 3 de dezembro de 1976, sete homens armados
entraram na casa do cantor de reggae mais famoso do mundo: Bob Marley.
No pátio da
casa, eles encontraram a esposa do cantor e compositor, Rita Marley, e, sem
dizer nenhuma palavra, deram um tiro em sua cabeça.
Três deles
cercaram a casa e os demais entraram na cozinha onde Marley conversava com os
integrantes de sua banda, The Wailers, enquanto preparava uma salada de frutas.
De acordo com
a jornalista britânica Vivien Goldman, que estava na Jamaica na época, o que
aconteceu foi uma cena de fuzilamento em câmera lenta.
Os homens
dispararam contra os músicos. O sangue respingou nas paredes e formou poças no
chão. Em meio aos gritos, um dos invasores apontou contra o peito de Marley e
puxou o gatilho.
No total
eles dispararam mais de 80 tiros. Mas, em um desfecho inacreditável, ninguém
morreu naquela noite - ainda que as tensões tenham recrudescido no país.
Jamaica,
1976
Minutos
antes do ataque, Marley tinha encerrado um ensaio para o Smile Jamaica, o show
que poderia influenciar o destino político do país
Mesmo 40
anos depois o episódio ainda é considerado obscuro e envolto em mistério.
Na época, a
Jamaica era um país oposto ao seu estereótipo atual. A ilha estava muito longe
de ser um tranquilo paraíso caribenho.
Em 1976,
quem mandava eram os traficantes e pistoleiros; as tensões sociais estavam em
seu ponto máximo e sob influência da Guerra Fria, além de ter estruturas
políticas fragilizadas menos de duas décadas depois de sua independência do
Reino Unido.
No mapa, a
Jamaica está mais perto de Cuba do que Cuba está perto de Miami. E, na
cartografia ideológica da década de 1970, Havana e Kingston eram vizinhas de
Moscou.
O
primeiro-ministro Michael Manley, do Partido Nacional do Povo (PNP), socialista
e próximo de Fidel Castro, tentava a reeleição enfrentando Edward Seaga, do
Partido Trabalhisa Jamaicano (JLP). Alguns ligavam Seaga à agência secreta
americana, a CIA.
No meio
desses extremos estava uma estrela mundial do reggae que tentava manter sua
neutralidade, mas cuja música mobilizava centenas de milhares de eleitores.
"Os
políticos são o diabo", disse Marley na época, de acordo com Mikal
Gilmore, jornalista veterano da revista Rolling Stone.
Os dois
candidatos a premiê queriam que Marley fizesse campanha para eles. E, se ele
não fizesse, o melhor seria é que ele ficasse em silêncio.
Ameaças
"Foi a
época mais violenta que o país viveu, e Marley era praticamente a única força
que poderia unir os dois grupos", explicou o escritor jamaicano Marlon
James.
Em 1976, a
fama mundial transformou o cantor de 31 anos em um líder quase espiritual de
boa parte dos milhões de moradores da ilha.
O reggae
tinha se transformado em uma expressão popular de um país pobre em que "as
pessoas estavam cada vez mais desesperadas e violentas", segundo a
jornalista Vivien Goldman. "A ilha parecia cheia de armas".
Michael
Manley, o então primeiro-ministro da Jamaica e candidato à reeleição
Show gratuito
O governo de
Manley convenceu Marley a oferecer um show gratuito na capital, Kingston, para
acalmar os ânimos da população que já estava cansada de viver em estado de
emergência.
O evento
estava programado para o dia 5 de dezembro e se chamava Smile Jamaica
("Sorria Jamaica" em tradução livre).
Mas o
primeiro-ministro também tomou outra decisão que parecia apenas confirmar a
desconfiança do cantor em relação aos políticos: adiantou as eleições para o
dia 15 de dezembro.
E, dessa
forma, ficou inevitável a associação entre Bob Marley e a campanha de reeleição
de Michael Manley.
O cantor até
alertou que, devido a essa manobra, as ameaças de morte contra ele aumentaram.
Mesmo assim, Marley decidiu participar do cshow.
Dois
policiais foram designados para cuidar de sua casa, que também era onde o The
Wailers ensaiava.
Mas na noite
de 3 de dezembro, dois dias antes do Smile Jamaica, por alguma razão que até
hoje ninguém conseguiu explicar, os sete homens armados entraram na casa de
Marley sem que ninguém os impedisse.
Os dois
policiais simplesmente não estavam em seus postos.
'Sete
Assassinatos'
Em apenas
cinco minutos, os homens entraram na casa de Marley, dispararam contra todos e
fugiram. Nunca foram capturados e nunca se soube quem eles eram ou para onde foram.
"É um
mistério como esses homens, que talvez tenham cometido o crime mais temerário e
doloroso da história da Jamaica, simplesmente desapareceram", contou o
escritor Marlon James no site da editora Malpaso, que traduziu para o espanhol
o livro que ele escreveu, A Brief History of Seven Killings (em tradução livre,
Uma breve história de sete assassinatos).
No livro,
James usa como ponto de partida o ataque contra Marley para mergulhar na vida
dos bairros mais perigosos de Kingston, nos conflitos de raça e classe, nas
guerras entre quadrilhas e nas conspirações de governo.
O resultado
são quase 700 páginas nas quais se misturam as vozes de 76 personagens. Com
elas, Marlon James venceu em 2015 o Man Booker Prize, talvez o prêmio literário
mais famoso do idioma inglês.
De acordo
com o jornal americano The New York Times, toda trama social explosiva daqueles
anos girava em torno de Bob Marley, que ele tinha se transformado em uma
espécie de santo para os oprimidos, um revolucionário para os conservadores e uma
ameaça para os políticos.
Salvo por
Selassie
Além de não
saber como os sete homens conseguiram desaparecer, ainda não se sabe como
Marley sobreviveu a um tiro no peito.
O cantor
sempre disse que foi salvo pelo espírito de Haile Selassie, o imperador da Etiópia
morto no ano anterior (Para rastafáris como Marley, Selassie era a reencarnação
de Deus. O uso dos cabelo "rasta" e da maconha também fazem parte
desse movimento espiritual nascido na Jamaica).
Rita Marley
ao lado do príncipe Charles durante uma visita do britânico à Jamaica; ilha foi
colônia britânica até 1962
"Se
Marley, naquele momento, estivesse inspirando em vez de expirando, a bala teria
atravessado seu coração", afirmou Marlon James.
A bala
passou pelo peito de Marley e foi parar no braço esquerdo. Não houve tempo para
um segundo disparo.
No meio da
confusão, Don Taylor, o agente do cantor, se jogou sobre ele, levando cinco
tiros no abdome. Mas sobreviveu.
O caso mais
incrível, no entanto, foi o de Rita Marley, a esposa de Bob. A bala disparada
contra sua cabeça ficou presa entre seu couro cabeludo e o crânio sem fazer
maiores danos.
Dois dias
depois do ataque, ainda com curativos no peito e no braço, Marley se apresentou
por mais de uma hora diante de mais de 80 mil pessoas no concerto Smile
Jamaica.
Rita o
acompanhou, ainda usando a camisola do hospital.
Marlon James
nasceu na Jamaica e tinha 6 anos quando Bob Marley sofreu a tentativa de
assassinato
Êxodo
Poucos dias
depois do show, Marley viajou. Foi para as Bahamas, aos Estados Unidos e depois
para Londres. De certa forma, a Jamaica jamais voltou a ser seu lar como era
antes.
Mas
tentativa de assassinato inspirou o que a revista americana Time considera o
melhor álbum de música do século 20, Exodus.
A primeira
canção, Natural Mystic, diz:
Esta pode
ser a primeira trombeta, pode ser também a última:
Muitos mais
terão que sofrer, Muitos mais terão que morrer.
No último
minuto de um vídeo no YouTube, de imagens escuras e de má qualidade, é possível
ver Bob Marley no fim da apresentação Smile Jamaica.
Foram feitos
mais de 80 disparos contra Marley e os músicos; a bala passou perto do coração
do cantor
O cantor
entrega o microfone a um companheiro de banda e se aproxima do público. Um
policial faz a segurança.
Em frente à
multidão, a lenda do reggae desabotoa a camisa devagar e mostra o ferimento a
bala que cruzou seu peito chegando até ao braço esquerdo.
Marley
continuou com esta bala alojada no corpo e na música até o dia de sua morte em
1981, com apenas 36 anos.
FONTE: http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/09/o-dia-em-que-tentaram-matar-bob-marley-com-um-tiro-no-coracao.html